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O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO: A CULPA

 

Abstract


The relationship between capitalism and religion was analyzed in Max Weber s famous work, The Protestant Ethics and the Spirit of Capitalism, published in its definitive form in 1920. One year later, Walter Benjamin produced an intriguing sketch on the subject, a true research script that he never accomplished and whose manuscript came to light in the edition of his complete works in 1985. With the title Capitalism as religion, Benjamin goes beyond Weber in claiming that not only the elements of Protestant ethics gave impetus to capitalism, but that capitalism itself as a whole must be seen as religion. According to Benjamin, one of the hallmarks of the religious form of capitalism is that it is not a religion of redemption but of blame, whose worship, rather than atone for guilt, intensifies it, expanding human despair to the universal religious state. In this sense, our paper aims to analyze the influence of the Christian concept of guilt on the religious structure of capitalism and how permanent blame has become a fundamental element of the reproduction mechanism of the capitalist system. In addition, we will present Benjamin s critique of Nietzsche s conceptions of eternal return and Cadernos Walter Benjamin 23 Doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Brasileiro, residente em Ilhéus – Bahia. Email: [email protected] 163 the progress of vulgar Marxism as mythical visions of fate in history, unable to offer an emancipatory alternative to capitalism. Key-words: Capitalism as a religion. Guilt. Protestant ethics As relações entre o capitalismo e religião foram analisadas na famosa obra de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicada em sua forma definitiva em 1920. Um ano mais tarde, Walter Benjamin elaborou um instigante esboço sobre o tema, um verdadeiro roteiro de pesquisa que nunca veio a ser concretizado e cujo manuscrito veio a lume na edição de suas obras completas, organizada por Ralph Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser, em 1985. Com o título Capitalismo como religião, Benjamin vai além de Weber ao afirmar que não só os elementos da ética protestante deram impulso ao capitalismo nascente, mas que o próprio capitalismo, como um todo, deve ser visto como uma religião. Para demonstrar sua tese, Benjamin enumera quatro traços que podem ser identificados na estrutura religiosa do capitalismo. Primeiro, ser uma religião só de culto, cuja duração é permanente. “Nele, todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto; ele não possui nenhuma dogmática, nenhuma teologia. Sob esse aspecto, o utilitarismo obtém sua coloração religiosa.” (BENJAMIN, 2013, 21). A segunda característica é a duração permanente do culto. “O capitalismo é a celebração de um culto sans trêve et sans merci [sem trégua e sem piedade]. Para ele, não existem ‘dias normais’, não há dia que não seja festivo no terrível sentido da ostentação de toda a pompa sacral, do empenho extremo do adorador.” (Idem, 21-22). Benjamin ironiza a critica protestante de que no calendário católico há um excesso de dias santos, já no capitalismo não existiriam “dias normais”. Ou seja, o culto ocorre o tempo todo, ou melhor, a medida do tempo em dinheiro permite que o culto prossiga em um fluxo contínuo, seja na forma de investimentos e rentabilidade do capital, seja no culto às mercadorias, em que cada aspecto da vida é preenchido por relações de consumo. Um terceiro traço é que esse culto não é expiatório, mas culpabilizador, ou seja, o culto não elimina a culpa, mas a torna universal. Cadernos Walter Benjamin 23 Doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Brasileiro, residente em Ilhéus – Bahia. Email: [email protected] 164 Nesse aspecto, tal sistema religioso é decorrente de um movimento monstruoso. Uma monstruosa consciência de culpa que não sabe como expiar lança mão do culto, mas para torná-la universal, para martelá-la na consciência e, por fim, e acima de tudo, envolver o próprio Deus nessa culpa, para que ele se interesse pela expiação. (Idem, 22). Por fim, o quarto traço dessa religião é que seu Deus precisa ser ocultado. O Deus a que se presta culto, o capital, é o grande sujeito do sistema que coloca as relações capitalistas de produção em movimento, que produz ganhos e catástrofes econômicas e ambientais, mas que simplesmente não aparece como sujeito na naturalização do sistema realizada por seus adoradores. Assim, vários ídolos tomam seu lugar como sua forma fantasmagórica: dólar, bolsa, mercado... que ocupam os noticiários manifestando diferentes estados de humor, como ocorre com as variações do clima. Nessa caracterização, o conceito de culpa ocupa um lugar central, até mesmo pela sua “demoníaca ambiguidade”, como se refere Benjamin ao fato de que em alemão Schuld significa, ao mesmo tempo, “culpa” e “dívida”, o que trás uma dificuldade a mais na tradução e interpretação do esboço. O presente artigo investiga as origens religiosas da estrutura de culpabilização no capitalismo e de como esta estrutura atua como mecanismo essencial para reprodução do sistema. Para tanto, analisaremos o conceito de culpa em outras obras de Walter Benjamin do mesmo período, para delimitar mais claramente seus contornos. Em seguida, veremos como tal conceito evoluiu na teologia cristã e se tornou o eixo central do modo capitalista de vida, ou seja, como ocorreu a secularização, ou, para usar o conceito de Giorgio Agamben, a profanação do campo religioso tornado cotidiano, isto é, como se deu a amálgama entre o campo sagrado e profano através do mecanismo da culpabilização no capitalismo. 1 O conceito de culpa Uma das chaves para elucidação do conceito de culpa em Walter Benjamin é o texto, também de 1921, Destino e caráter. Nele, Benjamin discute a possibilidade da liberdade como pressuposto da ética e a falsidade da relação causal entre destino e caráter, já que o caráter é referido indevidamente como Cadernos Walter Benjamin 23 Doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Brasileiro, residente em Ilhéus – Bahia. Email: [email protected] 165 causa do destino. Ou seja, se conhecêssemos o caráter de uma pessoa em todos os seus pormenores seria possível prever exatamente o seu destino, pois o sujeito só realiza o que seu caráter determina, como algo pré-estabelecido. Nesse sentido, os sinais do caráter seriam algo reconhecível, o que permitiria a previsão do destino para quem é capaz de ler os sinais, por exemplo, nas mãos e também nos sinais exteriores ao corpo como no horóscopo. Esta possibilidade de relação causal é contestada por Benjamin, pois os sinais do caráter estão ligados ao corpo enquanto os do destino atingem a vida exterior. Por outro lado, há uma ação recíproca entre o indivíduo e o mundo, de modo que não se pode estabelecer uma relação causal entre ambos. “Entre este indivíduo e o mundo exterior tudo é, pelo contrário, ação recíproca, os seus campos de ação interpenetram-se; por mais que as suas ideias sejam diferentes, os seus conceitos não são separáveis” (BENJAMIN, 2011, 6). Para evitar a superposição entre os conceitos é preciso colocá-los devidamente nas esferas de onde se originam. “O caráter é geralmente colocado num contexto ético, e o destino num contexto religioso” (BENJAMIN, 2011, 6). Portanto, não há como realizar uma vinculação entre eles, já que pertencem a domínios diferentes. O fato do conceito de destino ter se deslocado para o campo religioso ocorreu por outra conexão que deu origem ao erro. “Tal erro deve-se à relação estabelecida, no caso do conceito de destino, entre este e o de culpa” (BENJAMIN, 2011, 6-7). A origem dessa imbricação entre destino e culpa corresponde à ideia clássica grega do indivíduo sempre sujeito a cair em uma culpa grave, na hybris. Um exemplo disso é citado por Benjamin no texto Para uma crítica da violência, de 1921. Trata-se do mito de Níobe que provoca a ira da deusa Leto que só tinha dois filhos, Apolo e Artemis, enquanto Níobe se gabava de ter quatorze, sete filhos e sete filhas. Enfurecida, a deusa manda que seus filhos matem todos os filhos de Níobe. O orgulho de Níobe que atrai a violência dos deuses não desafia o direito, mas o destino, que sempre sai vitorioso. Matando seus filhos, mas a deixando viva, a deusa a torna “mais culpada que antes, quase um eterno e mudo sustentáculo da culpa, marco entre os homens e os deuses” (BENJAMIN, 1995, 38). O contrário dessa perspectiva é que se há salvação possível, o destino não pode ser considerado como algo religioso. Como observa Benjamin, Cadernos Walter Benjamin 23 Doutor em Filosofia pela PUC-SP e professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Brasileiro, residente em Ilhéus – Bahia. Email: [email protected] 166 uma ordem cujos únicos conceitos constitutivos sejam a desgraça e a culpa, e da qual se exclua a possibilidade de um caminho de salvação (pois a partir do momento em que algo se transforma em destino é desgraça e culpa) – uma tal ordem não pode ser religiosa, por mais que o conceito de culpa, falsamente compreendido, para aí pareça remeter” (BENJAMIN, 2011, 7) E qual seria o domínio em que destino e culpa se confundem sem que haja possibilidade de redenção? “O Direito eleva as leis do destino, a desgraça e a culpa, à categoria de medidas da pessoa humana” (BENJAMIN, 2011, 7). O Direito dialeticamente, ao tentar vencer os demônios da religião, acaba por secularizá-los através dos códigos que determinam as relações entre os homens. “Por tanto, no fundo, o sujeito não tem um destino, mas o sujeito do destino é como tal indeterminável. O juiz pode descortinar destino onde quiser, e ditará às cegas um destino com cada condenação” (BENJAMIN, 2011, 9). A culpa se torna naturalizada e, dessa forma, previsível e reconhecível, da qual o indivíduo é apenas um caso exemplar. Cada condenação é uma repetição de casos anteriores e os casos futuros tamb

Volume 23
Pages 162
DOI 10.17648/2175-1293-v23n2019-8
Language English
Journal None

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