Acta Scientiarum. Language and Culture | 2021

Clarice Lispector recontada: entrevista com Nádia Battella Gotlib

 

Abstract


Agamben (2016, p. 105) reivindica para a essência do enigma “[...] uma promessa de mistério [...]” e um “[...] pathos [...]” que nutrem a expectativa da representação, ou mais especificamente, da aparência. O enigma, na visão do crítico italiano, traz consigo uma filosofia da desilusão e um desespero diante dela. O fato enigmático “[...] se refere apenas à linguagem e à sua ambiguidade [...]” (Agamben, 2016, p. 105), não consegue “[...] captar o ser, a um tempo perfeitamente manifesto e absolutamente indizível” (Agamben, 2016, p. 106). Diante do não nomeado, instaura-se o medo. O medo da ‘verdade’. Ou da fabricação de uma imagem da verdade. É esse medo arcaico “[...] contido em toda representação tem no enigma a sua expressão e o seu antídoto [...]”, afirma Agamben (2016, p. 106). Daí uma biografia constituir-se um gênero que remete a uma ‘máquina desejante’, no sentido que este conceito tem para Deleuze e Guattari (1976, p. 51), posto que “[...] o que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções”. Clarice: uma vida que se conta, resultado da tese de livre-docência da professora e crítica de literatura, Nádia Battella Gotlib, publicada pela primeira vez em 1995, tem como objeto uma máquina desejante de enigma chamada Clarice Lispector. O ensaio biográfico-crítico de Gotlib captura e cartografa perspectivas e dimensões plurívocas da vida e da obra de Clarice Lispector, advogando a presença de uma interseccionalidade entre ambas, e pondo em relevo, o desenho de uma biobibliografia que se inscreve sob o signo da intensidade, do mistério, de linhas de força de uma estética da existência, como num ‘romance de formação’. Exercício acurado e de uma “[...] alegria difícil [...]”, para lembrar a narradora de A paixão segundo G. H. (Lispector, 1964, p. 5) – ou de uma “[...] felicidade diabólica [...]” da narradora de Água viva (Lispector, 1993, p. 27) que enseja uma visão caleidoscópica – e sem o ônus hagiográfico -, diante de uma vida, de um estilo, de uma experiência existencial e escritural nômades (Curi, 2001); de uma visão de literatura marcada pela fluidez, pelo devir, pela obsessão pelo “[...] instante-já” (Lispector, 1993, p. 28 ) o ovo clariceano e sua “[...] impossível captação” (Souza, 2013, p. 81): “Estou improvisando e a beleza do que improviso é fuga [...]”, confessa a narradora de Água viva (Lispector, 1993, p. 52). Na comemoração do centenário de nascimento da escritora e vinte e cinco anos da publicação de Clarice Lispector, uma vida que se conta, Nádia B. Gotlib (2013) gentilmente cede a breve entrevista que aqui se segue, cuja arguição busca sobretudo a permanência da interrogação sobre essa dimensão enigmática que os sentidos da obra clariceana infundem no leitor e na leitora, como nota de tributo a uma ‘verdade’ de “[...] silêncio e leve espanto” (Lispector, 1993, p. 92) de uma vida que continua a contar-se a si mesma, mantendo a desilusão de ser tomada em sua totalidade, e sem necessariamente inventariar os porquês, conquanto “[...] pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem resposta...” (Lispector, 1993, p. 15).

Volume 43
Pages None
DOI 10.4025/ACTASCILANGCULT.V43I1.57710
Language English
Journal Acta Scientiarum. Language and Culture

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